O acordo secreto: Uma leitura derrideana de Walter Benjamin

Por Maria João Cantinho[1]

Ao arrepio das correntes do pensamento filosófico da década de 90, Derrida reconhecia-se um herdeiro de Marx, assumindo inequivocamente a sua filiação. É, com efeito na sua obra Spectres de Marx, publicada em 1993 que o autor explicita claramente a sua posição, dizendo que seria uma lacuna, ou melhor, um “erro” do nosso pensamento não ler ou não discutir Marx, ou seja, ignorando ou menosprezando a sua influência marcante no pensamento contemporâneo:

 Será sempre um erro não ler e reler e discutir Marx. (…) Isso será, cada vez mais, um erro, uma falta de responsabilidade teórica, filosófica, política. Desde que a máquina de dogmas e os aparelhos ideológicos «marxistas» (…) estão em vias de extinção, nós não temos mais desculpa, alibis, para nos desviarmos dessa responsabilidade. Não haverá futuro sem isso. Sem Marx, não haverá futuro sem Marx. Sem a memória e a herança de Marx (…). (Derrida, 1993, pp. 35, 36)[2].

Derrida ergue-se, sobretudo, contra o pensamento de autores da pós-modernidade como Francis Fukuyama (O Fim da História e o Último Homem) e de todos aqueles que defendem o jargão do «fim da história», do «fim do marxismo», de um pensamento «escatológico», como ele próprio o intitula (Ibidem, p. 37). Partilhando uma constelação muito própria do pensamento político influenciado pela leitura de Marx, que viveu os turbulentos acontecimentos do Maio de 68 em Paris, Derrida retoma nesta obra uma reflexão sobre o seu pensamento, reinterpretando-o, discutindo-o, tentando compreender os paradoxos e problemas que lhe são intrínsecos.

O texto de Maurice Blanchot, «Les trois paroles de Marx» (Blanchot, 1971, pp. 109-117) serve-lhe de inspiração, na obra já referida, para questionar essa herança e, sobretudo, o lugar do «compromisso». (Derrida, 1993, p. 41). E, a atentarmos nas páginas que se seguem, em Spectres de Marx, o compromisso é justamente o de uma restauração da justiça. Citando o exemplo de Hamlet, o que se encontra em jogo é uma missão: a de “fazer justiça de uma demissão do tempo” (p. 45). Derrida fala ainda de um “movimento da correcção, da reparação, da restituição, da vingança” (idem), e que ele também designa por injunção. A vingança de Hamlet, relativamente ao espectro do pai, é a de exigir essa reparação da injustiça, uma expiação da falta, pela parte daquele que cometeu o crime. E o erro irreparável ou a fissura, a maldição indefinida de que nos falam Blanchot e Derrida, é a aquela que “marca a história do direito ou a história como direito: que o tempo seja out of joint”, aquele que “vota o homem a não ser o homem do direito senão como herdeiro reparador da falta, ou seja, como aquele que castiga, punindo e matando. A maldição será inscrita no próprio direito. Na sua origem assassina.” (Derrida, 1993, p. 47).

Esta relação assassina e original com o direito e com a história, que aparece no exemplo de Hamlet, em Derrida, remete-nos imediatamente para a legítima aspiração da justiça que um dia “já não pertenceria à história”, mas que se inscreve numa outra ordem, messiânica[3], subtraindo-se à fatalidade da vingança. Ora, esta superação, aqui apontada por Derrida, relembra a posição de Benjamin[4], na sua obra Sobre o Conceito de História. Existe, assim, um encontro privilegiado entre os dois autores, podendo nomear-se os conceitos que os aparentam: responsabilidade, missão, justiça. E uma categoria fundamental é-lhes transversal: a do tempo. A instância do tempo como “presente”. Como diz Derrida, “o próprio tempo, justamente, sempre como «nosso tempo», a época e o mundo entre nós” (Ibidem, p. 48). A pergunta, formulada com clareza por Derrida, é a de saber se essa disjunção/disjuntura – a do tempo – não será a própria possibilidade do outro. Pois que essa disjunção ou desajustamento do tempo, de algo que está mal, a disjunção da injustiça, é a que cria a possibilidade para que o “bem” ou a justiça se anunciem, isto é, a reparação. Mais do que dialogar com Walter Benjamin, Derrida fá-lo aqui com Levinas, relembrando a fórmula levinasiana do dom: “A relação com o outro – ou seja, a justiça” (Levinas, 1961, p. 62). Aquilo que ressuma no texto de Blanchot, «Les Trois Paroles de Marx», de acordo com Derrida, “é o apelo ou a injunção política, o compromisso ou a promessa” (Derrida, 1993, pp. 59, 60). E a injunção com Marx está precisamente no apelo à justiça, como um horizonte de abertura que se instaura no momento revolucionário e, no entender de ambos, Blanchot e Derrida, violento, urgente. Leia-se o que escreve Blanchot:

A segunda palavra [de Marx] é política: ela é breve e directa, mais que breve e  mais que directa, porque ela curto-circuita toda a palavra. Ela não traz mais um sentido, mas um apelo, uma violência, uma decisão de ruptura. Ela não diz nada, propriamente falando, ela é a urgência daquilo que anuncia, ligada a uma exigência impaciente e sempre excessiva, pois o excesso é a sua única medida: assim, chamando à luta e mesmo (o que nós nos apressamos a esquecer) postulando o “terror revolucionário”, recomendando “a revolução em permanência” e sempre designando a revolução (…) como iminência, porque é o traço da revolução de não oferecer atraso, se ela se abre e atravessa o tempo, dando-se a viver como exigência sempre presente. (Blanchot, 1971, p. 116).[5]

Este desejo revolucionário, que se abre em “espera” é, ele próprio, um desejo de ressurreição da filosofia, pois num texto de 1959, Passions, Blanchot escrevia sobre a “morte da filosofia”:

Após um século e meio, sob o seu nome [Marx], como sob o nome de Hegel, de Nietszche, de Heidegger, é a própria filosofia que afirma ou realiza o seu próprio fim, que ela compreende como o cumprimento do saber absoluto, a sua supressão teórica ligada à sua realização prática, o movimento niilista onde se abismam os valores, enfim, pelo acabamento da metafísica. (…) Eis o crepúsculo que, aliás, acompanha cada pensador, estranho movimento fúnebre que o espírito filosófico celebra numa exaltação aliás frequentemente alegre, conduzindo as suas lentas cerimónias fúnebres no decurso das quais ele conta, de uma maneira ou de outra, obter a sua ressurreição. (Blanchot, la fin de la Philosophie, 1959, pp. 292, 293).

É precisamente neste enleio entre iminência e desejo de ressurreição que se abre o espaço da nossa análise, como o movimento originário e possibilitante da injunção. Ao descobrir-se o saber como estéril – isto é, como fundamento dos sistemas filosóficos que assentam sobre a pretensão do saber absoluto – o pensamento reclama urgentemente uma novidade, ou seja, uma possibilidade de abertura para a história e para a prática. Uma exigência de ruptura imediata e revolucionária, intempestiva e messiânica, entendendo-se este messianismo como um conceito secularizado da teologia judaica. Face ao esvaziamento da teleologia e das grandes narrativas da filosofia e da própria história, urge uma nova releitura da história e dos seus paradigmas. É necessário também, como bem o compreenderam Rosenzweig, Scholem, Walter Benjamin, uma crítica da própria visão do progresso da história, rompendo com as categorias que lhe são inerentes: a homogeneidade do tempo vazio e mecânico, a linearidade dos factos históricos e uma suposta causalidade que seria explicada a partir de tais pressupostos.

Interrompendo aqui a leitura de Derrida, quero apenas frisar alguns aspectos históricos que permitem ao leitor compreender melhor o que significa esta ideia de secularização. Foi Max Weber quem analisou, em primeiro lugar e na sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de 1905, esta questão. Max Weber definia a secularização como um processo pelo qual o conjunto dos fenómenos saídos das representações religiosas teria desaparecido, incorporando-se nas sociedades históricas. E Hegel compreendeu muito bem esta dimensão da secularização. Nas suas lições de Iena sobre a filosofia da Natureza e do Espírito, ele analisa «a ligação sintética da Igreja e do Estado» e «os dois mundos» nos quais vive o homem moderno. O Estado realiza (em Hegel) e actualiza sem cessar o que é a religião em si. A secularização de Hegel é uma secularização do e para o Estado. Para Weber, a secularização remete assim, pondo-se ao serviço do Estado, para o desencantamento e para a racionalização do mundo. A teoria de Weber relaciona o desaparecimento de um suposto encantamento religioso ou messiânico com a secularização, retomando a origem histórica no profetismo judaico. Mais tarde, na sua obra Politische Teologie (1922), Carl Schmitt fixava esse conceito de secularização: “Todos os conceitos decisivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados” (Schmitt, 1922, p. 49). Aquilo que Walter Benjamin pretende é escrever/conceber a história a partir de conceitos da teologia judaica que são secularizados, nomeadamente o conceito de messianismo, retirando-lhe a sua componente/carga teológica. De qualquer das formas, quer se aborde Weber ou Schmitt, a secularização dos conceitos religiosos é uma das marcas fundamentais da modernidade, tal como diagnosticaram esses autores.

Aquilo a que Derrida se refere é, com efeito, a esta secularização do messianismo, nos seus traços estruturais: na ideia da redenção/justiça e na questão da temporalidade. A singularidade desta modalidade é a própria temporalidade, no sentido em que designa a suspensão, a paragem, o instante, como veremos. Neste contexto do “fim da filosofia”, é preciso repensar a herança de Marx, como Derrida o reconhece, na esteira do pensamento de Walter Benjamin, em particular. Para ele, “a herança não é nunca um dado, é sempre uma tarefa. Ela permanece diante de nós, tão incontestavelmente que, mesmo antes de a querer ou de a recusar, nós somos os herdeiros” (Derrida, 1993, p. 94). Herdeiros do marxismo, acrescenta. E tal significa que, mais do que “termos” ou “recebermos” a herança, aquilo que somos constitui essa herança, quer sejamos ou não conscientes do facto. E, como tal, somos o testemunho dessa herança. Da mesma forma, Walter Benjamin parte desse pressuposto, nas suas teses sobre a história – sobretudo a I e a II.

A posição benjaminiana é problemática[6] e levanta contradições e interpretações várias, como veremos. Se; por um lado, Benjamin nos conduz à suspeita, relativamente ao materialismo dialético, representando-o como um “boneco em traje turco”, que é comandado pelo anão da teologia; por outro, ele frisa a ideia de que deve ser sempre este boneco a ganhar, sendo que ele é a própria metáfora do materialismo dialético:

É conhecida a história daquele autómato que teria sido construído de tal maneira que respondia a cada lance de um jogador de xadrez com um outro lance que lhe assegurava a vitória na partida. Diante do tabuleiro, assente sobre uma mesa espaçosa, estava sentado um boneco em traje curto, cachimbo de água na boca. Um sistema de espelhos criava a ilusão de uma mesa transparente de todos os lados. De facto, dentro da mesa estava sentado um anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que conduzia os movimentos do boneco por meio de um sistema de arames. É possível imaginar o contraponto desta aparelhagem na filosofia. A vitória está sempre reservada ao boneco a que se chama «materialismo histórico». Pode desafiar qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia que, como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia[7]. (Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, 1977, p. 693).

Benjamin reconhece a associação entre o «materialismo dialético» e “uma frágil força messiânica” (ein schwache messianischen Kraft) (Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, 1977, p. 694), que não pode ser ignorada pelo materialismo dialético enquanto tarefa. Mas essa associação aparece explícita na tese II, onde Walter Benjamin refere uma pretensão (Anspruch), que, no entender de Derrida, não se encontra longe do que ele sugere na palavra injunção, como a restituição dessa disjunção de que se falou no início, a de uma falha que é a própria da injustiça. Para Benjamin, essa exigência é, não apenas uma urgência, como uma tarefa da responsabilidade do historiador materialista. Cabe-lhe a ele a restauração dessa pretensão, a qual é o próprio fundamento da justiça.

Na tese II, Walter Benjamin retoma a obra de Hermann Lotze, Mikrokosmos. Ideen zur Naturegeschichte und Geschichte der Menschheit. Versuch einer Anthropologie (Leipzig, 1864), citando-o. Lotze rejeitava as concepções da história que menosprezavam as reivindicações/pretensões (Ansprüche) das épocas passadas e que, além disso, consideravam que o sofrimento das épocas passadas estava irrevogavelmente perdido. Para Lotze, como para Benjamin, é preciso que o progresso se cumpra também para as épocas passadas, de uma forma misteriosa  (Benjamin, Das Passagenwerk, 1972, pp. 599, 600). A presença do texto de Lotze é muita viva nesta tese, no sentido em que ele apresenta a rememoração (Eingedenken) como forma de restituição da justiça. Por outro lado, esta tese inspira-se também numa passagem de Horkheimer, num artigo que este havia publicado sobre Bergson, em 1934, na Zeitschrift für Sozialforschung:

Aquilo que aconteceu aos seres humanos que caíram nenhum futuro pode reparar. Eles não serão nunca chamados, para serem os bem-aventurados para a eternidade (…) No meio desta imensa indiferença só a consciência humana pode tornar-se o lugar elevado onde a injustiça sofrida pode ser abolida/ultrapassada (aufgehoben), a única instância que não se satisfaz com isso (…) Agora que a fé na eternidade se deve decompor, a historiografia é o único tribunal de apelo que a humanidade presente, ela própria passageira, pode oferecer aos protestos que vêm do passado. (Horkheimer, 1968, pp. 188, 189).

A ideia de uma superação (Aufhebung) da injustiça passada pela consciência histórica, de reparação, corresponde perfeitamente à pretensão de Benjamin, mas ele dá-lhe uma dimensão teológica que não é aceitável para Horkheimer. Numa carta que escreve a Benjamin, datada de 16 de Março de 1937, Horkheimer volta a esta discussão, mas sobretudo para discutir e criticar, no seu essencial, o carácter “idealista” de uma história como “não-fechada” (Unabgeschlossenheit): “A injustiça do passado está cumprida e fechada. Os assassinados foram verdadeiramente assassinados…Se se tomar seriamente o não-fechamento da história, deve-se acreditar no Juízo Final…”. Benjamin atribuiu uma importância tão grande a esta discussão entre ambos que integrou a carta no Livro das Passagens (Benjamin, Das Passagenwerk, 1972, p. 589). Porém, não partilhava a visão da história de Horkheimer, como acabada e confere à rememoração (Eingedenken) essa qualidade de redimir a história e o sofrimento, isto é, utilizando uma categoria da teologia judaica e aplicando-a à história. A rememoração constitui, aos olhos de Benjamin, a única categoria capaz de “tornar não-fechado” o sofrimento aparentemente definitivo das vítimas do passado. Como ele próprio o diz, no Livro das Passagens:

É teologia; mas na rememoração nós fazemos uma experiência que nos interdiz de conceber a história de maneira radicalmente ateológica, mesmo se não temos o direito de a tentar escrever em termos directamente teológicos. (Benjamin, Das Passagenwerk, 1972, p. 589).

A rememoração é, assim, uma das tarefas do anão teológico que se “esconde” por baixo da mesa – e assim deve manter-se – para que o materialismo dialético vença a partida. Porém, Benjamin é muito claro. A pretensão não é escrever/conceber a história de forma teológica, ou seja, à maneira de uma teologia, mesmo se usamos os conceitos teológicos.

Não podemos esquecer a dívida de Benjamin para com Horkheimer, mas a rememoração, a contemplação das injustiças passadas são, ainda, insuficientes para Benjamin, exigindo uma reparação da injustiça. E esta só pode ocorrer pela redenção (Erlösung) do sofrimento, da desolação das gerações vencidas e do fracasso dos seus objetivos. Mas esta reparação de que Benjamin fala é também aquilo a que a tradição judaica designava por tikkun, na teologia e na cabala. Vejamos a tese II:

Por outras palavras: na ideia que fazemos da felicidade vibra também inevitavelmente a da redenção. O mesmo se passa com a ideia de passado de que a história se apropriou. O passado traz consigo um índex secreto que o remete para a redenção. Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas? As mulheres que cortejamos não têm irmãs que já não conheceram? A ser assim, então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa. Então, fomos esperados sobre a Terra. Então, foi-nos dada, como a todas as gerações que nos antecederam, uma frágil força messiânica (ein schwache messianischen Kraft) a que o passado tem direito. Não se pode rejeitar de ânimo leve esse direito. E o materialista histórico sabe disso. (Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, 1977, pp. 693, 694).

A redenção de que nos fala Benjamin pode ser concebida, aqui, de maneira teológica e profana. Do ponto de vista da secularização, a redenção significa, como se pode verificar no conjunto das teses que se seguem, a emancipação dos oprimidos. Tomemos o exemplo dos “vencidos de Junho de 1848”, o qual é mencionado no Livro das Passagens[8]. Eles esperam de nós não apenas a rememoração do seu sofrimento, mas igualmente a reparação das injustiças passadas e o acabamento da sua utopia social. É a isto que Walter Benjamin se refere quando fala do “acordo secreto”, de uma tarefa ou de um pacto secreto que nos liga ao passado e do qual não podemos desenvencilharmo-nos, se nos pretendemos fiéis ao materialismo dialético, como uma visão da história que assenta na luta permanente dos oprimidos contra os opressores. E a redenção, que é, ao mesmo tempo, messiânica e revolucionária – a revolução dos vencidos é a secularização do elemento messiânico -, configura-se como uma tarefa que nos é atribuída pelas gerações passadas. Não há um Messias enviado do céu para nos redimir, mas somos nós próprios esse Messias e cada geração possui uma parcela desse poder messiânico que ela deve esforçar-se por exercer, numa tarefa que há de restituir a justiça e libertar os vencidos dos opressores. Não se trata, assim, de esperar passivamente a vinda do Messias, mas de agir colectivamente, para um fim de libertação e de restituição da justiça, de superação dessa disjunção ou disjuntura original de que fala Derrida, quando refere a injustiça e a necessidade de Hamlet de reparar a justiça. E esse movimento inscreve-se, do ponto de vista de Derrida, numa injunção, ou seja, numa separação dessa falha originária pela reposição da justiça e da restauração do tempo. Por isso, Derrida vê na pretensão (Anspruch) dos vencidos do passado essa exigência, uma proximidade ou uma correspondência com o conceito de injunção.

Se; por um lado, a tese II se orienta para o passado, para a história e para a rememoração dos “vencidos”; por outro, ela vira-se, também, para o presente, exigindo a acção redentora. E o presente configura-se como um protagonista fundamental, conferindo o sentido à própria história. Isto é, o poder messiânico não é meramente contemplativo sobre o passado, mas ele é iminentemente ativo e revolucionário, constitui-se como uma tarefa do presente e que se realiza no presente. Faz “saltar” o tempo dos carris do tempo da linearidade e da continuidade, tal como o entendia a história tradicional. Isto é, o poder messiânico – que se configura aqui no conceito de imagem dialética[9] de Walter Benjamin – interrompe-o, para fazer implodir o acontecimento histórico no presente, no tempo do Agora (Jetztzeit). Este é o tempo messiânico, o instante ou, ainda, “a porta estreita” para a passagem do Messias, de que nos fala Benjamin na última tese:

O tempo que os áugures interrogavam para saber o que ele trazia no seu ventre não era certamente visto como tempo homogéneo e vazio. Quem tiver isto presente talvez possa fazer uma ideia de como o tempo passado foi experienciado na rememoração (Eingedenken) – exatamente dessa maneira. Como se sabe, os Judeus estavam proibidos de investigar o futuro. Pelo contrário, a Tora e as orações ensinam a prática dessa rememoração. Isso retirava ao futuro o seu carácter mágico, que era aquilo que procuravam os que recorriam aos áugures. Mas isso não significa que, para os Judeus, o tempo fosse homogéneo e vazio, pois nele cada segundo era a porta estreita por onde podia entrar o Messias. (Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, 1977, p. 704).

Seguindo este filão do pensamento de Walter Benjamin, de Moses Hess, de Rosenzweig, de Scholem, de Derrida, Gérard Bensussan clarifica bem, na sua obra Le Temps Messianique, esta dimensão fundamental do tempo na construção de um projeto político e messiânico, podendo efetivamente, contribuir decisivamente para a compreensão daquilo a que Derrida se refere quando fala, em Spectres de Marx, a propósito da tese II de Walter Benjamin, de “messiânico sem messianismo” (Derrida, 1993, p. 96). Também nesta passagem Derrida nos remete para a “porta estreita” para a passagem do Messias, como sendo o instante messiânico ou, ainda, o que é o mesmo, o tempo do Agora (Jetztzeit) a que se refere Benjamin. A nossa questão diz respeito, precisamente, a esta ideia paradoxal – aparentemente – do “messiânico sem messianismo”. Que lógica é esta? E de que forma a leitura de Derrida permite esclarecer o pensamento benjaminiano? Não é tanto em Spectres de Marx que Derrida esclarece o texto benjaminiano, ao qual consagra, neste texto, uma nota de rodapé longa, mas sobretudo num outro texto, Marx & Sons, posterior e onde ele retoma o debate sobre o messianismo. Como o próprio Derrida afirma:

(…)em princípio, o uso que eu faço da palavra «messiânico» não está, de todo, ligada a tal ou tal tradição messianista. É por isso que eu falo precisamente de «messianicidade sem messianismo». E é por isso, se me é permitido insistir à letra sobre essa pequena frase, que eu escrevi: «o parágrafo seguinte nomeia o messianismo ou, mais precisamente, messiânico sem messianismo, uma “frágil força messiânica” (…) A incisão, «messiânico sem messianismo» é, bem entendida, a minha formulação, não a de Benjamin. Não se trata de uma tradução ou de uma equivalência, mas de uma orientação e da ruptura que eu queria marcar (…) (Derrida, Marx & Sons, 2002, pp. 71, 72).

Vemos bem a pretensão de Derrida: ao ler Benjamin, pretende marcar uma diferença, uma ruptura. Como ele próprio o afirma, trata-se de uma outra estrutura: “Uma messianicidade sem messianismo não é um messianismo enfraquecido, uma força diminuída de uma espera messiânica. É uma outra estrutura, uma estrutura da existência (…)” (Derrida, Marx & Sons, 2002, p. 72). Derrida fala, a seguir, “na tomada em conta de um horizonte de espera que informa a nossa relação com o tempo”. A proposta de Derrida, na interpretação de Benjamin, é muito clara:

A interpretação do messiânico que eu proponho (…) não tem mais nenhuma relação essencial com o que nós podemos compreender por messianismo, ou seja, pelo menos em duas coisas: por um lado, a memória de uma revelação histórica determinada, seja ela judaica ou judaico-cristã, e, por outro, uma figura relativamente determinada do messias. A messianicidade sem messianismo exclui, na sua pureza, essas duas condições (Derrida, Marx & Sons, 2002, pp. 72, 73).

Então, perguntemo-nos, quais são os traços fundamentais desta estrutura? Trata-se de “desconstruir o messianismo” (Derrida, Marx & Sons, 2002, p. 77), para “salvar a messianicidade” ou o messiânico. Trata-se de libertar o messianismo das suas figuras – “as formações «religiosas», ideológicas ou fetichizantes” (ibidem), para conservar essa potência messiânica que permanece, “como a justiça, não passível de ser desconstruída. Indesconstrutível porque o próprio movimento de toda a desconstrução a supõe”. O texto de Derrida é, aqui, complexo, mas conserva uma clareza impressionante. Pois este suposto indesconstrutível e que é o próprio “fundamento” da desconstrução é a messianicidade ou o messiânico. Derrida recusa o termo de “fundamento”, chamando-lhe antes injunção e esta injunção, que não pode ser desconstruída, “comanda toda a urgência, sem esperar, aqui e agora” (ibidem), convertendo-se ao mesmo tempo “na possibilidade, mas também na necessidade de uma história”. Esta messianicidade será, talvez (Derrida hesita em defini-la), uma força, como movimento ou desejo:

(…) como o movimento de um desejo, a atracão, o élan ou a afirmação invencíveis de um advir imprevisível (ou seja, de uma passado a-re-tornar), a experiência do não-presente, do não-presente vivo no presente vivo (do espectral), do sobrevivente (absolutamente passado ou absolutamente a vir para lá de toda a apresentação ou representabilidade, etc.) (Derrida, Marx & Sons, 2002, p. 78)

Derrida coloca a tónica na questão essencial da temporalidade e também da justiça e ela não pode ser compreendida fora do contexto com a ligação com o marxismo, cuja pertinência Derrida esclarece, em Spectres de Marx. Também aqui aparece a ideia da “desconstrução da ontologia marxista” (Derrida, 1993, p. 146), como ele a defende, como um projeto do qual não pode alhear-se e que diz respeito, não aos aspectos teórico-especulativos do corpo marxista, “mas a tudo o que se articula à história mais concreta dos aparelhos e das estratégias do movimento operário mundial” (ibidem). O fio que percorre o pensamento de Derrida e o liga aos pensadores judaicos messiânicos (e também ligados ao marxismo) fica bem à vista:

E esta desconstrução não é, em última análise, um procedimento metodológico ou teórico. Na sua possibilidade como na experiência do impossível que a terá sempre constituído, ela não é nunca estrangeira ao acontecimento: simplesmente à vinda do que chega. Alguns filósofos soviéticos diziam-me em Moscovo, há alguns anos: a melhor tradução para perestroïka, é, ainda «desconstrução». (Derrida, 1993, p. 146)

É por essa razão que Derrida se prende a essa “desconstrução da ontologia marxista”, reforçando o elo com o marxismo da seguinte forma:

Ora, se há um espírito do marxismo ao qual eu nunca estaria preparado para renunciar, isso não é somente a ideia crítica ou a postura questionadora (…). É sobretudo uma certa afirmação emancipatória e messiânica, uma certa experiência da promessa que se pode tentar libertar de todo o dogmatismo e, mesmo, de toda a determinação metafísico-religiosa, de todo o messianismo. E uma promessa deve prometer ser mantida, ou seja, a de não ficar «espiritual» ou «abstracta», mas de produzir acontecimentos, novas formas de acção, de prática, de organização, etc.

Libertar o “messiânico” do messianismo, eis o propósito fundamental de Derrida, na leitura/reinterpretação do marxismo. Porque o messianismo de que nos fala aqui Derrida é o da teologia judaica, o qual encerra a própria história numa “esperança passiva”, encerrado também na figura daquele que há-de-vir para nos salvar. Não é este messianismo teológico que serve a Derrida e tão-pouco a Walter Benjamin e, quando ele fala de libertar o “messiânico” do messianismo, referindo-se à “frágil força messiânica” da tese II, a que Benjamin também alude e que é preciso libertar, tal apresenta-se nitidamente como uma urgência ética e política, de restauração da justiça. E só o marxismo o pode fazer, ou melhor, só o marxista[10] o pode levar a cabo. Este elemento messiânico, tanto em Derrida como em Benjamin, diz respeito a um messianismo secularizado, liberto da teologia. Vejamos o que Benjamin diz na tese XII:

O sujeito do saber histórico é a classe combatente, a própria classe oprimida. Em Marx, ela apresenta-se como a última classe subjugada, a classe vingadora que levará às últimas consequências a obra de libertação em nome de gerações de vencidos.” (Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, 1977, p. 700)

Já na tese IV, onde se falava da classe operária, Benjamin aludia a este aspeto, mas não referia o carácter revolucionário-messiânico da luta do operariado, ideia que é reforçada na tese XV. Assim, a revolução da classe oprimida, na sua luta pela restauração da justiça, é, ela própria, uma libertação dessa “frágil força messiânica”, que só pode ser levada a cabo pelo historiador materialista. E é precisamente a esta tarefa que alude Derrida, em Spectres de Marx, quando nos propõe a libertação do elemento messiânico, reactivando o seu movimento político e restaurador da justiça. Cabe ao historiador essa compreensão da secularização, libertando-a de toda a determinação metafísico-religiosa.

É esse, também, o espírito que habita na fidelidade derrideana ao marxismo. Mas não como uma atitude teórico-contemplativa, como já referimos. Como ele próprio o diz, não podemos fugir a essa herança, porque nos cabe a responsabilidade da tarefa da restauração da justiça:

Ora, o gesto da fidelidade a um certo espírito do marxismo, eis uma responsabilidade que incumbe em princípio, certamente, a alguns. (…) Mas esta responsabilidade parece hoje, pelo menos, nos limites de um campo intelectual e académico, retornar mais imperativamente, e digamos, para não excluir ninguém, em prioridade, em urgência (…)

A responsabilidade, uma vez mais, seria ainda a de um herdeiro. Quer eles queiram ou não, saibam-no ou não, todos os homens, sobre a terra inteira, são hoje, numa certa medida, os herdeiros de Marx e do marxismo. Ou seja, nós dizíamo-lo agora, da singularidade absoluta de um projeto – ou de uma promessa – de forma filosófica e científica. (Derrida, 1993, pp. 148, 149).

E “esta forma”, como acrescenta o autor, não é nem religiosa, nem mitológica, pois ela encontra-se para lá de todos os nacionalismos e nacionalidades, de todos os misticismos. Esse projeto é “absolutamente único”, pois o seu acontecimento é, ao mesmo tempo, “singular, total e inapagável” (Ibidem, p. 149). Tratando-se de uma herança que nos foi legada pelos nossos antepassados, apenas podemos reclamá-la enquanto responsabilidade, enquanto “pagamento de uma dívida”, uma vez que fomos esperados sobre a terra, como Benjamin o escreveu. É uma tarefa da memória, ou antes, da rememoração dos vencidos, uma tarefa de lutar contra o seu esquecimento e libertar/redimir o seu passado, no presente, como reactualização. Pois só o presente, nessa instância supremamente qualitativa, enquanto tempo cheio e vivido, redentor, pode restaurar a justiça.

Também na sua obra Schibboleth pour Paul Celan, e a propósito de um poema do autor, Derrida fala numa “idealidade sem presença” (Derrida, Schibboleth pour Paul Celan, 1986, p. 65), designando, a meu ver, uma estrutura análoga. Essa “idealidade transporta o esquecimento na memória, mas ela é a memória do próprio esquecimento, a verdade do esquecimento” (Ibidem). Esta idealidade que não tem presença, mas que transporta o esquecimento revela-se na própria rememoração, isto é, ela manifesta-se no instante da rememoração, não anulando nunca a singularidade do acontecimento[11]. Trata-se precisamente do que, para Derrida, nos reenvia à noção de injunção. Mais uma vez nos confrontamos com a ideia de uma restauração do passado e do acontecimento, mediante uma instância temporal bem específica: a do instante redentor, o qual se configura pelo seu carácter de urgência, subtraindo o acontecimento ao esquecimento e arrancando-o à linearidade do tempo. Interrompe-se, assim, a historicidade, tomada como fio ininterrupto e linear de factos, pois a rememoração faz deflagrar esse contínuo.

Num texto notável que Gérard Bensussan escreveu, “Messianisme, Messianicité, Messianique”, o autor refere-se a duas expressões análogas, uma de Derrida, “messianicidade sem messianismo” (Bensussan, 2004, pp. 15, 16) e outra de Scholem, quando este nos fala de um “messianismo sem messias” (Ibidem). Esta aproximação de Bensussan diz respeito, precisamente, à passagem de Derrida, ao comentar Benjamin, no texto Spectres de Marx. E ele parte dela para clarificar em que consiste essa instância de Derrida, a qual é partilhada por ele. Trata-se, como diz Gérard Bensussan, de retomar uma experiência da temporalidade que lhes é comum e a toda uma estrutura messiânica da própria filosofia moderna, como Bensussan explica ao longo da sua obra Le Temps Messianique.

No texto referido anteriormente, Bensussan segue Derrida e interpreta algumas das suas afirmações que, eventualmente, nos possam parecer menos claras, nomeadamente a questão da “messianicidade”. Refere que a proposta de Derrida dispõe com rigor e precisão as “pedras de toque” do messiânico, particularmente “o nó que ele significa, naquilo a que Rosenzweig chamava «o a-fazer do mundo», entre o tempo e o justo, o instante e o agir” (Bensussan, “Messianisme, Messianicité, Messianique”, 2004, p. 20), recusando essa dimensão da utopia, que nega o «realismo do imediato», isto é, a haver utopia[12], no messiânico, ela deve ser pensada como uma acção imediata e não como a «realidade do amanhã» (p. 21), esperada pacificamente, exatamente o que está em causa no messianismo. Como ele próprio o afirma:

O que eu retenho aqui de tão precioso em Derrida é a maneira, propriamente messiânica (pode-se ver aí o coração mais enterrado, o mais tenso, do messianismo), de pensar em conjunto e rigorosamente a recusa da presença e do significado (…) e a injunção «que comanda o compromisso sem esperar» «como se o destino da humanidade dependesse disso». (Bensussan, “Messianisme, Messianicité, Messianique”, 2004, p. 21).

Então, a expressão “messianicidade sem messianismo” reenvia para dois aspectos fundamentais dessa estrutura exigida por Derrida: ela não teria nenhuma relação com «uma figura determinada do messias» e também nenhuma relação «com a memória de uma revelação histórica determinada», como nos advertia em Marx & Sons. E neste “sem messianismo” se abre a possibilidade de uma nova leitura, mas também de uma nova acção política, ética, baseada sobretudo na exigência de uma restauração da justiça.

Porém, esta estrutura exige “uma experiência da temporalidade, da espera e da relação ao acontecimento” (Bensussan, “Messianisme, Messianicité, Messianique”, 2004, p. 16). No sentido em que o tempo homogéneo e linear da história é desconstruído, para dar lugar a uma perspetiva qualitativa do tempo, então aquilo que ocorre é uma “desformalização” do mesmo, isto é, uma “desarticulação do tempo uniformemente causal”. Este é também o tempo da injunção derrideana, como o instante capaz de  restaurar a justiça, de acordo com uma estrutura que é, em absoluto, secularizada e, toda ela, construída ou assente a partir da temporalidade. Bensussan retoma esta ideia, de forma mais ampla, na sua obra Le Temps Messianique.

Como Gérard Bensussan, também Derrida bebeu nas reflexões de Rosenzweig, de Moses Hess, de Levinas, de Schelling, onde essa dimensão da temporalidade é fundamental para a leitura e compreensão da história. A crítica destes autores à concepção da história (tanto às teleologias, como ao historicismo positivista do século XIX e à Ideologia do Progresso) diz respeito a uma espécie de “disjunção” do tempo e do espaço que procede da visão tradicional da história, em que o tempo mascara e falsifica – pela sua linearidade e homogeneidade – o próprio curso da “história dos vencidos”. E, sem querer reduzir as suas concepções, Derrida integra-se numa linha do pensamento judaico, que vê no messianismo uma porta ou uma abertura para uma nova compreensão da história, em que o político – como pretensão de justiça e de redenção – toma o seu lugar primeiro no palco da própria história. E se Bensussan vislumbra em Schelling e na sua obra As Idades do Mundo (1789), uma nova visão da temporalidade que revoluciona a ideia da linearidade do tempo histórico, é, todavia, e Rosenzweig e na sua obra Estrela da Redenção (1919) que irá demorar-se, para compreender esta nova estrutura da temporalidade, aquilo que Stéphane Mosès e Gérard Bensussan[13] designam por “desformalização do tempo” (Mosès, L’Ange de l’Histoire, 1987, p. 167). É preciso relembrar que também Bergson, a partir de formas diferentes, como Husserl e Heidegger, na sua obra magistral O Ser e o Tempo.

A desarticulação do tempo uniformemente causal tem em vista a sobrevalorização do instante, como “desconstrução da linearidade”. Trata-se de abolir uma noção da temporalidade como forma vazia e mecânica, do tempo como homogéneo e linear que está na base das concepções tradicionais da história e na qual os acontecimentos da vida psíquica viriam alojar-se. Contrariamente, Rosenzweig corrige: “Os acontecimentos não advêm no tempo; é o próprio tempo que advém.” (Rosenzweig, 1984, p. 149). Em qualquer um destes autores aqui citados – refiro-me aos mais ligados ao pensamento messiânico: Rosenzweig, Benjamin, Scholem – esta “desconstrução” da linearidade e da homogeneidade do tempo é a condição fundamental para uma nova construção e leitura da história. A experiência do tempo histórico em Benjamin está muito próxima da própria concepção de Rosenzweig, na sua obra Estrela da Redenção.

Para finalizarmos, e percorrendo o círculo, voltemos assim à formulação derrideana da leitura de Benjamin, em Spectres de Marx. Nessa nota de rodapé da página 96, que tanto alarido e polémica provocaram e que Derrida retomou em Marx & Sons, ressalta uma ideia fundamental que foi o fio condutor deste texto: a de uma temporalidade do presente, do instante, aquilo a que Benjamin chamava o Agora (Jetztzeit) e que se encontra na base desta nova estrutura messiânica, liberta do messianismo. Só esse instante, libertador e messiânico, permite a injunção derrideana, isto é, a restauração da justiça como tarefa urgente e responsável. Essa é a nossa herança e é essa a tarefa que nos cabe em sorte, pois “somos esperados sobre a terra”. Não há como escaparmos a essa herança marxista, diz Derrida, quer queiramos ou não, pois a tarefa é a de redimir os vencidos, aqueles que foram esquecidos pela história dos vencedores. Messiânico é isto, para Derrida: um projeto político e ético, a fazer-se no coração do instante e não uma qualquer utopia que relega a história para o futuro, adiando o presente.

Referências bibliográficas:

Benjamin, W. (1972). Das Passagenwerk. Em W. Benjamin, Gesammelte Schriften, V, 1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag.

Benjamin, W. (1977). Über den Begriff der Geschichte. Em W. Benjamin, Sprache und Geschchte, Philosophische Essays. Frankfurt: Reclam .

Benjamin, W. (2008). O Anjo da História (Vol. 4). (J. Barrento, Trad.) Lisboa: Assírio & Alvim.

Bensussan, G. (2001). Le Temps Messianique, Temps historique et temps vécu. Paris: J. Vrin.

Bensussan, G. (2004). “Messianisme, Messianicité, Messianique”. Em F. M. J. Benoist, Une Histoire de l’Avenir, Messianité et Révolution. Paris: J. Vrin.

Blanchot, M. (1959). la fin de la Philosophie. Em M. Blanchot, Passions. Paris : Galilée.

Blanchot, M. (1971). Les Trois paroles de Marx. Em M. Blanchot, L’Amitié. Paris: Gallimard.

Derrida, J. (1986). Schibboleth pour Paul Celan. Paris: Galilée.

Derrida, J. (1993). Spectres de Marx. Paris: Galilée.

Derrida, J. (2002). Marx & Sons. Paris: PUF/Galilée.

Horkheimer, M. (1968). Kritische Theorie, I. S. Fisher.

Levinas, E. (1961). Totalité et Infini. Paris: M. NIjhoff.

Mosès, S. (1982). Système et Révélation. La Philosophie de Franz Rosenzweig. Paris: Seuil.

Mosès, S. (1987). L’Ange de l’Histoire. Paris: Seuil.

Rosenzweig, F. (1984). Der Mensch und sein Werk. Em F. Rosenzweig, Gesammelte Schriften, III. La Haye: Martinus Nijhoff.

Schmitt, C. (1922). Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Munique/Leipzig: Duncker & Humblot.


[1] PhD em Filosofia Contemporânea, Professora auxiliar do Iade (Creative Instituto of Lisbon). O endereço de email é mjcantinho@gmail.com

[2] Todas as traduções em que não refiro outra autoria são da minha responsabilidade.

[3] É preciso, desde já, advertir o leitor que o messianismo de que falamos aqui, tanto no que se refere a Walter Benjamin como a Derrida, nada tem a ver com o messianismo religioso ou com uma qualquer posição exegética e teológica. É fundamentalmente uma característica não-teológica que se abre a uma modalidade do pensamento político e revolucionário, do advento da justiça e da sua restauração. A posição benjaminiana nem sempre foi compreendida de forma adequada, sobretudo pela sua proximidade com o pensamento de Gershom Scholem, um dos grandes historiadores da tradição e da teologia judaica.

[4] Relembrando-nos ainda o tom dos textos de Benjamin Para uma Crítica da Violência (1921) e Fragmento Teológico-Político (1920).

[5] Blanchot acrescenta ainda, em nota de rodapé, que essa situação se tinha verificado no Maio de 1968.

[6] E o seu carácter problemático ocupou muitos dos seus comentadores, pois muitos reclamavam Walter Benjamin para o marxismo, outros para a teologia judaica e houve comentadores que procuraram fazer uma interpretação de conciliação, criando várias divergências na interpretação destes textos e, até, mal-entendidos.

[7] Tradução de João Barrento, in O Anjo da História, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2008.

[8] Mas é também mencionado na obra histórica de Marx.

[9] Conceito fundamental da perspetiva benjaminiana da história, que é definido essencialmente na Letra N do Livro das Passagens, mas que também merece destaque como categoria nuclear na sua obra Sobre o Conceito de História.

[10] No caso de Benjamin, é o “materialista dialético”, para sermos rigorosos.

[11] Referimo-nos aqui à experiência do holocausto, vivenciada por Paul Celan.

[12] V. Mosès, Stéphane, L’Ange de l’Histoire, ed. Seuil, Paris, 1992, p. 155. Aqui, o autor contrapõe, a propósito de Walter Benjamin, à ideia do «fim da história» a de uma “utopia surgindo no próprio coração do presente”. Nunca a utopia é postulada, tanto em Benjamin como em Derrida como algo que advirá, mas sempre um agente poderoso da história, capaz de resgatar os fenómenos históricos, subtraindo-os à linearidade.

[13] Este é um dos temas cruciais ao longo de toda a sua obra Le Temps Messianique.

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